Uma reitora e uns pós duvidosos

Luís Capucha
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Um dia acontece – Episódio número 16 
Novela Trágico-animalista by Luís Capucha

O irmão da Dª Benvinda veio ao funeral do Nené, onde encontrou muitos amigos e um ambiente de grande consternação perante a brutalidade com que a realidade tantas vezes nos surpreende. Na despedida da irmã e do cunhado confessou-se particularmente indignado perante os comentários dos animalistas nas redes sociais. Escreviam sem vergonha – mas em geral cobardemente protegidos pelo uso de pseudónimos – coisas como “fico feliz com a morte desse sádico…”, “deviam era morrer todos…”, “bem feita, filho da p…”, “antes a morte dele do que andarem a maltratar os animais” e outros mimos que, dizia o de Abiúl, “só mostram que gente é esta. Nem a dor dos amigos e familiares são capazes de respeitar. Não gostam mesmo de pessoas, essa é que é essa. E nem dos animais…a bem ver, só dos bichanos e dos lulus de trazer por casa”.

– “Podes crer, respondeu o João Pereira, que nós já sofremos bem na pele do que é que essa gente é capaz. Perseguir, reprimir, mentir, inventar, destilar ódio até ao limite do absurdo”.

Mais algumas palavras de circunstância e cada qual lá foi ao seu caminho. No dia seguinte a Dª Benvinda voltou à escola e o João Pereira às vendas.

Na escola, a conversa ao café foi deveras interessante. – “Então já viram? A Maria de Lurdes Rodrigues foi eleita Reitora do ISCTE”, lançou a Dª Benvinda para começar a conversa. Que se ateou mais depressa do que os fogos do verão.

-“Essa? Só de ouvir falar dela até fico arrepiada. Foi a pior Ministra da Educação que já tivemos”, disse a professora que não via mal nenhum na Supernanny.

-“Oh. minha querida, não exageres” respondeu a que gostava de ler livros científicos. “Está bem que ela cometeu erros, principalmente na confusão que foi a avaliação e aquela coisa dos professores titulares. Mas fez muitas coisas boas: tentou acabar com os horários zero (para incómodo de alguns cá da escola, digo eu aqui que ninguém nos ouve), introduziu a escola a tempo inteiro e as atividades de enriquecimento curricular no primeiro ciclo, nunca se tinha construído tantos centros escolares, fez obras nas escolas secundárias que estavam a cair, equipou as escolas com banda larga, computadores, quadros interativos, permitiu o acesso de toda a gente a computadores portáteis, criou as Novas Oportunidade para os adultos e foram quase dois milhões que voltaram à escola, dando emprego a muitos colegas que sem isso teriam ido parar ao meio da rua, generalizou a educação profissional no secundário e fez o abandono escolar precoce vir por aí abaixo, criou novos programas de português e matemática, reviu a confusão dos exames, eu sei lá que mais…a mulher parecia hiperativa”.

-“Ela fez foi um ataque aos professores! Tentou descredibilizar a classe, virar os pais contra nós, foi um demónio”, ripostou a mais burra das três docentes.

-“Isso a mim parece-me um lugar comum. É a cassete do Mário Nogueira. Se calhar o Crato, que apagou mais de 50 mil professores do sistema e deixou carradas de pessoal no desemprego, esse é que respeitou a classe, não? Essa conversa serve para sindicalista, mas, cá para mim, um ministro não pode servir só para satisfazer os interesses de uma classe profissional. Se calhar por falta de ministros com coragem para meter os tribunais a funcionar para a justiça e não para os juízes, ou de meter os hospitais a trabalhar para satisfazer os doentes e não os médicos, ou as escolas para educar as crianças e não para deixar que algumas, que nós bem as conhecemos, andem aí na boa vai ela, é que o nosso país não anda mais depressa”, respondeu a intelectual.

Pragmática e sintética como sempre, a Dª Benvinda foi lapidar: -“Olha, nunca vi nenhum colega mau professor dizer bem da Maria de Lurdes. É certo que também tenho visto muitos colegas que são bons e dedicados a detestá-la, mas o contrário é que nem um. Às vezes parece que nós, que somos uma profissão intelectual, em vez da razão só usamos a emoção. E até os melhores cegam e, sobre certos assuntos, como essa cagança do prestígio da classe, parece que pensam com os pés. Com certeza não foi por ser tão má como muitos dos nossos colegas a pintam que deu aquela banhada aos tipos da Reitoria lá no ISCTE. Ouvi dizer que o candidato da situação teve 10 votos e ela 22. Tenho um amigo que trabalha lá e me disse que a maneira como ela foi eleita prova que nem sempre ganham os maus”. E lá foi a burra a bufar para a aula, porque aquela tacadazinha até ela tinha conseguido perceber.

Um pouco mais tarde o João Pereira voltava a almoçar com os quatro amigos do banco. Calhou ir até à baixa tentar a sorte nalguns restaurantes e hotéis, e resolveu ir almoçar ao Sr. Costa com os seus ex-colegas Joaquim Alves, Manuela Carvalho, Carlos Mendes e João Martins, “o filósofo”. Foi um reencontro feliz com uma notícia triste: a Manuela Carvalho também tinha recebido uma “guia de marcha” à conta do emagrecimento do Banco e da precarização do trabalho. Revoltante, porque isso aconteceu logo no dia em que os jornais anunciaram que o banco tinha dado outra vez lucros, mais de 200 milhões. Porém, as notícias acerca do sucesso do João Pereira, no plano económico, eram animadoras. “Eh pá, dá mais trabalho, mas não ando com chefe nenhum a chatear-me a toda a hora. E ganho mais do que ganhava”.

A conversa evolui, como não podia deixar de ser, para a política. E curiosamente, andaram perto da conversa na escola. Disse o Carlos Mendes:

-“Os poderosos protegem-se. Formam uma espécie de irmandade onde andam todos à bulha para ficar quem fica com o maior quinhão, mas primeiro asseguram-se de que não sai nada para fora da gamela. Viram a nova lei que saiu a tornar crime e a aumentar as penas sobre quem agredir jornalistas? Esses gajos podem manipular a opinião pública, vender-se sem vergonha para servir os patrões, e até mentir descaradamente. Às vezes apetece mesmo é olhá-los nos olhos, chamar-lhes mentirosos sem escrúpulos e pregar-lhes um murro nos cornos. Mas eles estão protegidos pela lei, e uma pessoa, mesmo prejudicada pela mentira, corta-se”.

– “Tens razão – disse o João Pereira – foi assim mesmo que me senti quando o Correio da Manhã inventou aquelas histórias mirabolantes sobre o meu caso com os animais”.

-“ Mas agora piorou, porque se acertares contas com eles como se devem acertar com os mentirosos, ainda és tu que vais de cana…” – rematou o Joaquim Alves.

Foi a deixa que o Jorge Martins, funcionário da caixa e filósofo fora da caixa, esperava. –“Saiu há dias aí num jornal diário um artigo de um investigador qualquer do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra a falar do advento da “pós-justiça” a propósito do Brasil e do escândalo Lula da Silva. Pós-justiça, vejam lá. Não admira, o chefe é um fervoroso adepto da tese da pós-modernidade e do relativismo pós-positivista, e parece que lá onde ele investiga ninguém pode sair da linha do chefe. Então agora é tudo pós-justiça, pós-verdade e pós tudo e mais umas botas”.

“Pós nada, digo eu. Todas as coisas são sempre pós algumas outras que aconteceram ou existiram antes. Por isso, falar de pós-justiça, pós-verdade, pós-modernidade, e isso tudo, é uma parvoíce lógica. Não é o mesmo que, à distância, situar um movimento ou um processo histórico concreto e real. O pós-modernismo foi mesmo um movimento cultural, e o pós-guerra foi mesmo um período de oiro na história da Europa. Pronto, estamos a falar de coisas concretas e não a inventar nomes só para dizer que a realidade está a mudar.”

O monólogo prosseguiu, com os outros quatro tão atentos à conversa como ao tempo que faltava para regressar ao trabalho.

– “Mas nestes casos não estamos a falar de realidades, mas de meras opiniões. É o que dá o relativismo: as opiniões valem tanto como as verdades verificadas e conferidas. O que é que o nosso tempo tem de pós-modernidade? Diziam isso para defender que alguns pilares das sociedade modernas, como o trabalho, estavam em declínio. Mas veio a crise e o que é que a gente vê? Os trabalhadores a pagá-la, como sempre, e as mega-empresas a acumularem riqueza, como sempre fizeram. Pós-verdade? O que é isso? Os poderosos não dominaram sempre com base na manipulação da informação, como recomendava o Maquiavel ao seu príncipe? Pós-justiça? Mas alguma vez os pobres foram presumidamente inocentes nos tribunais? A justiça alguma vez foi justa e socialmente neutra? Não esteve sempre ao serviço dos ricos e poderosos? Então, o que se passa agora é pós o quê? Pós-nada! Só mais do mesmo de sempre”.

Prossegue no próximo episódio


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Luís Capucha

Sociólogo, professor no Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do ISCTE-IUL e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, desde 1987. Coordenador do Mestrado em Administração Escolar no ISCTE-IUL. Os principais temas de pesquisa são as políticas de luta contra a pobreza e a exclusão social, as políticas sociais, as políticas de educação e de formação, as culturas populares, a reabilitação de pessoas com deficiência e as metodologias de planeamento e avaliação. É autor de livros, capítulos de livros e artigos de revista e outros títulos (mais de uma centena de títulos) publicados em Portugal, Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, Itália, Brasil e Angola. Apresentou comunicações e Conferências em cerca de duzentos encontros científicos em Portugal e no estrangeiro. Foi Director-Geral do Departamento de Estudos, Prospetiva e Planeamento do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social (1998-2001), Director-Geral da Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação (2006-2008) e Presidente da Agência Nacional para a Qualificação (2008-2011). Foi membro do Comité de Emprego da União Europeia. É membro do Conselho Nacional de Educação. É um colaborador ativo de associações diversas, de caráter social, profissional e local. Escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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